quinta-feira, 23 de outubro de 2008

PRIMEIRA GERAÇÃO ROMÂNTICA


GONÇALVES DE MAGALHÃES (1811-1882)


Poeta, político e médico fluminense, participou de missões diplomáticas na Europa e na América do Sul. Morreu em Roma, onde exercia cargos diplomáticos junto ao Vaticano. Ingressou em 1828 no curso de Medicina, em que se diplomou 1832. No mesmo ano estreou com Poesias e, no ano seguinte, partiu para a Europa com a intenção de se aperfeiçoar em Medicina. Enquanto conclui seus estudos entra em contato com as idéias românticas, fator essencial para a introdução do movimento no Brasil.

Sua importância está no fato de ter sido o introdutor do Romantismo no Brasil. Em contato com o romantismo francês, publicou em 1836 seu livro Suspiros poéticos e saudades, cujo prefácio valeu como manifesto para o Romantismo brasileiro, sendo por isso considerado o iniciador dessa escola literária no país. Suspiros poéticos e saudades é dividido em duas partes: "Suspiros poéticos" e “Saudades”. A primeira parte é constituída de 43 poemas sobre os mais diversos temas, tais como a própria poesia, o cristianismo, a mocidade, a fantasia, ou ainda diversas impressões sobre lugares, fatos e figuras da história. A segunda parte é dedicada, como o próprio título declara, à saudade, evocando em 12 poemas a pátria, a família, os amigos, enfim, pessoas, fatos e lugares caros ao poeta.

Em parceria com Araújo Porto-Alegre e Torres Homem, lançou a revista "Niterói". Voltou-se também para a produção teatral, que então era renovada com a produção de Martins Pena e os desempenhos de João Caetano, escrevendo duas tragédias: "Antônio José" ou "O poeta e a Inquisição" (1838) e "Olgiato" (1839). Apesar de introdutor do Romantismo entre nós, em vários momentos é possível encontrar vestígios de sua formação neoclássica. Restrições também podem ser feitas no tocante às representações do índio em suas obras. Seu poema épico "Confederação dos Tamoios" foi alvo de intensa polêmica, na qual antagonizaram José de Alencar, de um lado, e Monte Alverne e o Imperador pedro II, do outro.


SUSPIROS POÉTICOS E SAUDADES (1836)
PREFÁCIO

Pede o uso que se dê um prólogo ao Livro, como um pórtico ao edifício; e como este deve indicar por sua construção a que Divindade se consagra o templo, assim deve aquele designar o caráter da obra. Santo uso de que nos aproveitamos, para desvanecer alguns preconceitos, que talvez contra este Livro se elevem em alguns espíritos apoucados.

É um Livro de Poesias escritas segundo as impressões dos lugares; ora assentado entre as ruínas da antiga Roma, meditando sobre a sorte dos impérios; ora no cimo dos Alpes, a imaginação vagando no infinito como um átomo no espaço, ora na gótica catedral, admirando a grandeza de Deus, e os prodígios do Cristianismo; ora entre os ciprestes que espalham sua sombra sobre túmulos; ora enfim refletindo sobre a sorte da Pátria, sobre as paixões dos homens, sobre o nada da vida. São poesias de um peregrino, variadas como as cenas da Natureza, diversas como as fases da vida, mas que se harmonizam pela unidade do pensamento, e se ligam como os anéis de uma cadeia; poesias d'alma, e do coração, e que só pela alma e o coração devem ser julgadas.
Quem ao menos uma vez separou-se de seus pais, chorou sobre a campa de um amigo, e armado com o bastão de peregrino, errou de cidade em cidade, de ruína em ruína, como repudiado pelos seus; quem no silêncio da noite, cansado de fadiga, elevou até Deus uma alma piedosa, e verteu lágrimas amargas pela injustiça, e misérias dos homens; quem meditou sobre a instabilidade das coisas da vida, e sobre a ordem providencial que reina na história da Humanidade, como nossa alma em todas as nossas ações; esse achará um eco de sua alma nestas folhas que lançamos hoje a seus pés, e um suspiro que se harmonize com o seu suspiro. Para bem se avaliar esta obra, três coisas releva notar: o fim, o gênero, e a forma.

O fim deste Livro, ao menos aquele a que nos propusemos, que ignoramos se o atingimos, é o de elevar a Poesia à sublime fonte donde ela emana, como o eflúvio d'água, que da rocha se precipita, e ao seu cume remonta, ou como a reflexão da luz ao corpo luminoso; vingar ao mesmo tempo a Poesia das profanações do vulgo, indicando apenas no Brasil uma nova estrada aos futuros engenhos.

A Poesia, este aroma d'alma, deve de contínuo subir ao Senhor; som acorde da inteligência deve santificar as virtudes, e amaldiçoar os vícios. O poeta, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do Justo, e do Belo.

Ora, tal não tem sido o fim da maior parte dos nossos poetas; e o mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber, e que pudera ter sido o reformador da nossa Poesia, nos seus primores d'arte, nem sempre se apoderou desta idéia. Compõe-se uma grande parte de suas obras de traduções; e quando ele é original causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao homem civilizado, como se aquele a este superasse, como se a civilização não fosse obra de Deus, a que era o homem chamado pela força da inteligência com que a Providência dos mais seres o distinguira!

Outros apenas curaram de falar aos sentidos; outros em quebrar todas as leis da decência!

Seja qual for o lugar em que se ache o poeta, ou apunhalado pelas dores, ou ao lado de sua bela, embalado pelos prazeres; no cárcere, como no palácio; na paz, como sobre o campo da batalha, se ele é verdadeiro poeta, jamais deve esquecer-se de sua missão, e acha sempre o segredo de encantar os sentidos, vibrar as cordas do coração, e elevar o pensamento nas asas da harmonia até às idéias arquétipas.

O poeta sem religião, e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos aí procuram aplacar a sede.

Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa, e a América e só este bálsamo sagrado devem verter os cânticos dos poetas brasileiros.

Uma vez determinado e conhecido o fim, o gênero se apresenta naturalmente. Até aqui, como só se procurava fazer uma obra segundo a Arte, imitar era o meio indicado: fingida era a inspiração, e artificial o entusiasmo. Desprezavam os poetas a consideração se a Mitologia podia, ou não, influir sobre nós. Contanto que dissessem que as Musas do Hélicon os inspiravam, que Febo guiava seu carro puxado pela quadriga, que a Aurora abria as portas do Oriente com seus dedos de rosas, e outras tais e quejandas imagens tão usadas, cuidavam que tudo tinham feito, e que com Homero emparelhavam; como se pudesse parecer belo quem achasse algum velho manto grego, e com ele se cobrisse. Antigos e safados ornamentos, de que todos se servem, a ninguém honram!

Quanto à forma, isto é, a construção, por assim dizer, material das estrofes, e de cada cântico em particular, nenhuma ordem seguimos; exprimindo as idéias como elas se apresentaram, para não destruir o acento da inspiração; além de que, a igualdade dos versos, a regularidade das rimas, e a simetria das estâncias produz uma tal monotonia, e dá certa feição de concertado artificio que jamais podem agradar. Ora, não se compõe uma orquestra só com sons doces e flautados; cada paixão requer sua linguagem própria, seus sons imitativos, e períodos explicativos.

Quando em outro tempo publicamos um volume das Poesias da nossa infância, não tínhamos ainda assaz refletido sobre estes pontos, e em quase todas estas faltas incorremos; hoje, porém, cuidamos ter seguido melhor caminho. Valha-nos ao menos o bom desejo, se não correspondem as obras ao nosso intento; outros mais mimosos da Natureza farão o que não nos é dado.

Algumas palavras acharão neste Livro que nos Dicionários Portugueses se não encontram; mas as línguas vivas se enriquecem com o progresso da civilização, e das ciências, e uma nova idéia pede um novo termo. Eis as necessárias explicações para aqueles que lêem de boa fé, e se aprazem de colher uma pérola no meio das ondas; para aqueles, porém, que com olhos de prisma tudo decompõem, e como as serpentes sabem converter em veneno até o néctar das flores, tudo é perdido; o que poderemos nós dizer-lhes?.. . Eis mais uma pedra onde afiem suas presas; mais uma taça onde saciem sua febre de escárnio.
Este Livro é uma tentativa, é um ensaio; se ele merecer o público acolhimento, cobraremos ânimo, e continuaremos a publicar outros que já temos feito, e aqueles que fazer poderemos com o tempo. É um novo tributo que pagamos à Pátria, enquanto lhe não oferecemos coisa de maior valia; é o resultado de algumas horas de repouso, em que a imaginação se dilata, e a atenção descansa, fatigada pela seriedade da ciência.

Tu vais, oh Livro, ao meio do turbilhão em que se debate nossa Pátria; onde a trombeta da mediocridade abala todos os ossos, e desperta todas as ambições; onde tudo está gelado, exceto o egoísmo: tu vais, como uma folha no meio da floresta batida pelos ventos do inverno, e talvez tenhas de perder-te antes de ser ouvido, como um grito no meio da tempestade.

Vai; nós te enviamos, cheio de amor pela Pátria, de entusiasmo por tudo o que é grande, e de esperanças em Deus, e no futuro.

Adeus!


Paris, julho de 1836.



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A VOZ DE MINHA ALMA
(Fragmento)


Quando da noite o véu caliginoso
Do mundo me separa,
E da terra os limites encobrindo,
Vagar deixa minha alma no infinito,
Como um subtil vapor no aéreo espaço,
Uma angélica voz misteriosa
Em torno de mim soa,
Como o som de uma frauta harmoniosa,
Que em sagradas abóbadas reboa.
Donde vem esta voz?
— Não é de virgem,
Que ao prazo dado o bem-amado aguarda,
E mavioso canto aos céus envia;
Esta voz tem mais grata melodia!
Donde vem esta voz?
— Não é dos Anjos,
Que leves no ar adejam,
E com hinos alegres se festejam,
Quando uma alma inocente
Deixa do barro a habitação escura,
E na sidérea altura,
Como um astro fulgente
Penetra de Adonai o aposento;
A voz que escuto tem mais triste acento.
Como d'ara turícrema se exalça
Nuvem de grato aroma que a circunda,
E lenta vai subindo
Em faixas ondeantes,
Nos ares espargindo
Partículas fragrantes,
E sobe, e sobe, até no céu perder-se,
Tal de mim esta voz parece erguer-se.
Sim, esta voz do peito meu se exala!
Esta voz é minha alma que se espraia,
É minha alma que geme, e que murmura,
Como um órgão no templo solitário;
Minha alma, que o infinito só procura,
E em suspiros de amor a seu Deus se ala.
Como surdo até hoje
Fui eu a tão angélica harmonia?
Porventura minha alma muda esteve?
Ou foram porventura meus ouvidos
Até hoje rebeldes?
Perdoa-me, oh meu Deus, eu não sabia!
Eram Anjos do céu que me inspiravam,
E outras vozes meus lábios modulavam.



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CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS (1856)



Como da pira extinta a labareda,
Ainda o rescaldo crepitante fica,
Assim do ardente moço a mente acesa
Na desusada luta que a excitara,
Ainda, alerta e escaldada se revolve!
De um lado e de outro balanceia o corpo,
Como após da tormenta o mar banzeiro;
Alma e corpo repouso achar não podem.
Debalde os olhos cerra; a igreja, as casas,
A vila, tudo ante ele se apresenta.
Das preces a harmonia inda murmura
Como um eco longínquo em seus ouvidos.
Os discursos do tio mutilados,
Malgrado seu, assaltam-lhe a memória.
No espontâneo pensar lançada a mente,
Redobrando de força, qual redobra
A rapidez do corpo gravitante,
Vai discorrendo, e achando em seu arcanos
Novas respostas às razões ouvidas.
Mas a noilte declina, e branda aragem
Começa a refrescar. Do céu os lumes
Perdem a nitidez desfalecendo.
Assim já frouxo o Pensamento do índio,
Entre a vigília e o sono vagueando,
Pouco a pouco se olvida, e dorme, sonha,
Como imóvel na casa entorpecida,
Clausurada a crisálida recobra
Outra vida em silêncio, e desenvolve
Essas ligeiras asas com que um dia
Esvoaçará nos ares perfumados,
Onde enquanto reptil não se elevara;
Assim a alma, no sono concentrada,
Nesse mistério que chamamos sonho,
Preludiando a vista do futuro,
A póstuma visão preliba às vezes!
Faculdade divina, inexplicável
A quem só da matéria as leis conhece.
Ele sonha... Alto moço se lhe antolha
De belo e santo aspecto, parecido
Com uma imagem que vira atada a um tronco,
E de setas o corpo traspassado,
Num altar desse templo, onde estivera,
E que tanto na mente lhe ficara,
— "Vem!" lhe diz ele e ambos vão pelos ares.
Mais rápidos que o raio luminoso
Vibrado pelo sol no veloz giro,
E vão pousar no alcantilado monte,
Que curvado domina a Guanabara.
Cerrado nevoeiro se estendia
Sobre a vasta extensão de espaço em tôrno,
Cobertando o verdor da imensa várzea;
E o topo da montanha sobranceiro
Parecia um penedo no Oceano.
Mas o velário de cinzenta névoa
Pouco a pouco, subindo adelgaçou-se,
E rarefeito enfim, em brancas nuvens.
Foi flutuando pelo azul celeste.
Que grandeza! Que imensa majestade!
Que espantoso prodígio se levanta!
Que quadro sem igual em todo o mundo,
Onde o sublime e o belo em harmonia
O pensamento e a vista atrai, enleva
E faz que o coração extasiado
Se dilate, se expanda, e bata, e impila
O sangue em borbotões pelas artérias!
Os olhos encantados se exorbitam,
Como as vibradas cordas de uma lira,
De almo prazer os nervos estremecem;
E o espírito pairando no infinito,
Do belo nos arcanos engolfado,
Parece alar-se das prisões do corpo.
Niterói! Niterói! como és formosa!
Eu me glorio de dever-te o braço!
Montanhas, várzeas, lagos, mares, ilhas,
Prolífica Natura, céu ridente,
Léguas e léguas de prodígios tantos.
Num todo tão harmônico e sublime,
Onde olhos o verão longe deste Éden?


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